2020 – hell of a life

Escrevi o texto que se segue há quase três meses atrás, é hoje ainda mais premente que então. Os números com que lidamos hoje, a tal segunda vaga, são fruto de quê? 

Para que serviram os lockdowns se era para uns meses depois deitar a toalha ao chão? Medidas e mais medidas que ninguém, absolutamente ninguém controla! Máscaras de pano feitas em casa, máscaras a cobrir só a boca, idiotas que se acham invencíveis sem ela, eventos, festas privadas… De que serviu o lockdown? Para quê começar um maratona se não havia intenção de acabar? A sociedade actual vira as costas sempre que fica difícil, no capricho das suas vontades vira as costas até à própria existência.

A economia pode colapsar?

Faço-vos uma pergunta escandalosa: quem é que inventou a economia? Agora faço-vos outra: quem é que inventou a vida, quem nos deu a centelha que nos permite existir? Qual delas é que pode ser mais fácilmente reajustada, reinventada e reinterpretada, sem danos se assim o quisermos?

Nós somos os mestres do nosso próprio destino, mas não o somos da vida!

Na primavera as pessoas tremiam de medo, mas é no outono que mora o perigo.

My friend, mon ami, watashi no yūjin

2020 it’s been hell!

Assim é como facilmente poderia começar este texto, quando penso nos sete meses vividos deste ano. Começamos por ficar confinados a vermos a vida passar pela janela. “Isto passa” dizíamos todos baixinho, “Quando chegar o verão já não é nada”

E cá estamos nós, no verão! Saímos de casa com máscara, pensamos (alguns) 3-4 vezes se o sítio onde queremos ir, se temos mesmo que ir. Comer fora? E se a pessoa que me atender, aquela que cozinhar estiver doente e não sabe? 

Está um dia de calor tremendo, ir nadar?

E se uma, apenas uma das pessoa que lá estiver estiver infectada?

Eu sobrevivo a isso? Eu sobrevivo, claro. Sobrevivo mesmo?

Dor de cabeça, um pouco de tosse na rua e faz-se cambalhotas interiores impossíveis para não fazer um único movimento suspeito. Não se quer ser alvo de indagação, Todos, qualquer um é um alvo em potencial. Não, eu não tenho Covid, acho que não tenho. Sinto-me bem.

Até podes não ter o tal vírus, o maldito do Corona que não larga a manchete dos jornais. Destruidor da vida quotidiana, da economia, de sonhos, de esperança, da vida… Ele é hoje o culpado de tudo, culpado até da culpa existir. Mas não foi ele que criou as nossas economias insustentáveis, nem foi o realizador desta vida absurdamente rápida e consumista que levamos. Se há culpa que ele pode carregar é por deixar os nossos corpos fracos, é por tirar de nós entes queridos, é só essa a factura que lhe podemos passar. Se é grande? É imensa!

Agora para aqueles que jogam na roleta russa, com a vida deles e dos outros, é o vírus que tem culpa? Não!

Quando as coisas estão mal organizadas, há um limite para a culpa que o vírus pode ter. O vírus faz a sua parte, mas o grosso é feito por nós e pela nossa falta de organização sistêmica.

A minha linda e maravilhosa gata de 13 anos morreu há pouco tempo. O Covid teve culpa? Nunca saberei. A verdade é que o facto de terem fechado tudo, de não quererem saber de mais nada teve uma boa parte nisso. De repente todas as outras doenças parecem ser irrelevantes, todas a vidas que não sejam humanas também. 

O meu mundo desmoronou a partir daí, a partir do vírus? Não, a partir do dia em que a perdi. Vi mais salas de urgências e médicos em um mês que durante a minha vida inteira. Ainda assim qualquer suspeita, qualquer pequena dor que pode ser um milhão de outras coisas lá se vai parar, ao lugar onde de facto é provável que possamos contrair o Covid 19.

Fui recebida com guarda cerrada, como criminosos prestes a ser sentenciados. Ficamos alí, com papéis na mão a olhar uns para os outros, questionei-me se aquela pessoa duas cadeiras ao lado, que parecia estar a arder em febre seria o meu pesadelo futuro. Esperar, enfiarem-nos um cotonete de um tamanho medonho no nariz, sofrer. Primeiros resultados negativos. Ainda assim, ficar em isolamento, ver a vida acontecer do lado de fora. Todo este stress, físico e emocional, com baixa de dois dias, não mais de dois dias, porque o meu dever e de todos é trabalhar. É continuar nesta roda viva, se formos morrer de qualquer vírus, este ou futuro que seja para contribuir economicamente.

Se morrer amanhã, porque a economia não pode parar, porque a ganância de destruir o planeta não pode cessar, pelo que serei lembrada?

Pelos objectos que trazia na carteira, pelos sonhos pendurados na parede que nunca chegaram a acontecer?

Escrevo-vos daqui, não do isolamento, mas de uma vida pseudo normal, porque o teste deu negativo. O tratamento real da doença que provocou os sintomas ficou para depois, ficou para quando a minha vida, a minha presença não represente uma ameaça para outros. A vida dos outros representa uma ameaça à minha? Quem sabe!

É cansativo olhar à volta e ver no próximo sempre um potencial perigo. Viver assim, não é viver, é uma sobrevivência cavernosa. Kant filosofou sobre a necessidade absoluta de seguirmos uma moral elevada, uma conduta de responsabilidade perante o outro. Não é só “o homem está condenado a ser livre” de Satre, é uma liberdade racionalista. Esta liberdade faz muita falta neste dias sombrios, em que a vontade caprichosa do outro, a irresponsabilidade do outro, faz de todos alvos.

É assim tão difícil adiar uma viagem, não ir aquela festa, usar a máscara como deve ser (tapar só a boca não funciona, lamento), não estar em cima do outro, não fazer do supermercado a praça das conversas fúteis? Será isto pior que o labor de Sísifo? Não me parece. Então porque não somos capazes?

Existe um eu no nós, mas dificilmente um nós no eu. Gerações e gerações mimadas e egoístas que acham que a sua sobrevivência depende apenas delas mesmas, que as suas acções dizem respeito apenas a elas. O vírus Corona, tal como a peste, a febre espanhola e outros que tais põe-nos cara a cara com a nossa maldição – o egoísmo.

Quando o Homem “se abstém de pensar e deposita a confiança em velhas ou mesmo novas verdades – lançando-as como se fossem moedas com que se avaliassem todas as experiências, a própria humanidade perde a vitalidade”, – Hanna Arendt