Lispector … Lispector e ainda Lispector

Common Ground, la Biennale di Venezia, Susana dos Santos
“Um nome para o que eu sou, importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser.
O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu tinha? Em pequena, minha família por brincadeira chamava-me de ‘a protetora dos animais’. Porque bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente defendê-la.
[…] No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima.
É pouco, é muito pouco.”
“Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma idéia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade.
Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que ponto posso controlá-los. […] Deverei continuar a acertar e a errar, aceitando os resultados resignadamente? Ou devo lutar e tornar-me uma pessoa mais adulta? E também tenho medo de tornar-me adulta demais: eu perderia um dos prazeres do que é um jogo infantil, do que tantas vezes é uma alegria pura. Vou pensar no assunto. E certamente o resultado ainda virá sob a forma de um impulso. Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei.”
“[…] Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo, aliás, atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.
Até mais que treze anos, por exemplo, eu estava em atraso quanto ao que os americanos chamam de fatos da vida. Essa expressão se refere à relação profunda de amor entre um homem e uma mulher, da qual nascem os filhos. […] Depois, com o decorrer de mais tempo, em vez de me sentir escandalizada pelo modo como uma mulher e um homem se unem, passei a achar esse modo de uma grande perfeição. E também de grande delicadeza. Já então eu me transformara numa mocinha alta, pensativa, rebelde, tudo misturado a bastante selvageria e muita timidez.
Antes de me reconciliar com o processo da vida, no entanto, sofri muito, o que poderia ter sido evitado se um adulto responsável se tivesse encarregado de me contar como era o amor. […] Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continuou intacto. Embora eu saiba que de uma planta brota uma flor, continuo surpreendida com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache vergonhoso, é por pudor apenas feminino.
Pois juro que a vida é bonita.”

De Profundis

Composing Space, Hélène Binet
“Não tenhas medo do passado. Se as pessoas te disserem que ele é irrevogável, não acredites nelas. O passado, o presente e o futuro não são mais do que um momento na perspectiva de Deus, a perspectiva na qual deveríamos tentar viver. O tempo e o espaço, a sucessão e a extensão, são meras condições acidentais do pensamento. A imaginação pode transcendê-las, e mais, numa esfera livre de existências ideais. Também as coisas são na sua essência aquilo em que decidimos torná-las. Uma coisa é segundo o modo como olhamos para ela.”
Oscar Wilde, in ‘De Profundis’

Viagem

Turbulências – Susana dos Santos
O beijo da quilha

na boca da água
me vai trocando entre céu e mar,
o azul de outro azul, 
enquanto 
na funda transparência
sinto a vertigem
da minha própria origem
e nem sequer já sei
que olhos são os meus
e em que água
se naufraga minha alma

Se chorasse, agora,

o mar inteiro
me entraria pelos olhos
Mia Couto

Linhas

Phillips Headquarters under construction, Eindhoven, 1961 photo by Aart Klein
Fim de dia de um dia qualquer.
Hoje dei por mim a pensar, que coisa é esta de ser arquitecto…
Pela primeira vez, de forma sentida e não hipotética senti um repudio enorme pela profissão. Muitas das vezes não sei se sou uma pessoa ou se faço parte de uma máquina, a máquina a qual fico ligada 8h30 por dia sem mais nada. 
Linhas…linhas e mais linhas de forma esquizofrénica.
Caminho pelas ruas; linhas, linhas e mais linhas…
Os edifícios que era suposto amar, uma confluência de linhas, ódio. 
Não há contacto humano, beleza ou sinfonia apenas linhas, uma infinidade de linhas. Nós os super intelectuais arquitectos, que construímos para o Homem e de humanidade não entendemos nada, linhas… 
Nós os arquitectos, que conhecemos todas as bandas, os últimos álbuns, na nossa solidão e relação simbiótica com o ecrã.. E todo esse tempo dava para ser feliz, muito feliz se em vez disso tivesse apenas escolhido ser o vendedor de gelados da esquina, a veterinaria que cuida de animais todos os dias…
O ser humano que sente e pode sentir, sem esta relação calada, unilateral; de nada dizer, de tudo racionalizar…em volumes e linhas, cada dia, todos os dias da  minha vida!