A cidade

René Burri

A cidade é um chão de palavras pisadas


A cidade é um chão de palavras pisadas
a palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância e a palavra medo.

A cidade é um saco um pulmão que respira
pela palavra água pela palavra brisa
A cidade é um poro um corpo que transpira
pela palavra sangue pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas
como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
não há rua de sons que a palavra não corra
à procura da sombra de uma luz que não há.

José Carlos Ary dos Santos

Cocuana

Baldegg – Nuno Ribeiro
Hoje dei por mim a falar sem tristeza do avô…
Aquele homem extraordinário  que me ensinou a amar os animais, as plantas… que me ensinou a diferença entre persistência e teimosia.
O avô; que naquele dia há quase uma eternidade, me fez entender que estaleiros não são lugar para crianças, mas também lá foi dizendo que seria o meu se a paixão pelos tijolos, as tábuas e desenhar espaços no chão com um pau teimassem em persistir. 
Esses sintomas posso dizê-lo hoje, nunca passaram e uns anos mais tarde, lá fui eu para as urgências no dia do meu aniversário, por não resistir as pedras, aos tijolos e a madeira… O avô nesse dia já não pode esconder gelados ou morangos para me animar, mas de certo lá do alto não deixou de sorrir.
Depois houve aquela altura que cresceu o amor por África, por Moçambique, pela tua terra…Aquela terra que aprendi a sentir falta, ainda antes de a conhecer, por obra tua avô… Tantas coisas foram obra tua, os presépios gigantes com ribeiros, moinhos, musgo e estrelas. As fileiras de tomateiros, as bananeiras que teimavas em plantar num clima demasiado inóspito. As histórias que de tenra idade passei a ler na ânsia de tudo assimilar e entender, misturadas com o teu sorriso de orgulho e olhar inquieto. Entendo agora o olhar, quando me deparo no caminho e tardiamente sei seguir… 
O avô, que nos fins de tarde de verão se sentava sozinho a fumar… foi nesses dias quentes que aprendi a memorizar e amar os espaços pelos cheiros,  os sons, as cores e as texturas; sem o saber…

Dicotomia Rítmica

 
Este projecto, foi o fruto de um namoro com o acaso…Retém nele toda a beleza dos lugares e das gentes, uma memória para o futuro, daquilo que foi, do que não quis ou pode permanecer. Marca em mim também um tempo e um lugar, de facetas desconhecidas que agarrei e trouxe comigo até hoje hoje. Meses de paixão por palavras que revelassem a essência dos lugares, trabalho de campo, metódico e cronológico..  Filmagens, reuniões, telefonemas e mais telefonemas, autorizações em atraso. Pessoas, muitas pessoas incríveis que tornaram tudo isto possível! Uma homenagem e uma reflexão sobre a vida, usando como pano de fundo, uma das regiões mais harmoniosas do país, dando assim um contributo artístico em primeira mão ao distrito de Aveiro, mas na sua globalidade a toda uma nação cujo o orgulho rasteja pelas ruas.
Dicotomia Rítmica é um documentário sobre o povo do distrito de Aveiro, espelhando as suas vidas através das águas que tão bem definem aquelas terras e marcam a sua história.
Numa viagem por esse solo, a água marca o tempo como elemento simbólico, define personalidades, gestos, maneiras e costumes. A terra como agente activo no caminho do Homem. A alma que se espelha e se reflecte em cada grão de areia, fio de água, pedaço de rocha, nas searas de milho, nos arrozais…Na linha do horizonte onde a melodia embala a última embarcação, ou o pastor que guarda o seu rebanho.
 
“A relação dos Homens com o mágico e peculiar espaço histórico feito de água, terra, sol, vento e suor.”
(adoptado do livro Aveiro e os Caminhos do Sal)